Olhar #2 | "A Geração Z"
Esses dias eu estava scrollando pelo LinkedIn, e me deparei com uma publicação sobre um relatório de comportamento sobre a Gen Z, e que a solução para seu suposto desinteresse ou falta de motivação no trabalho seria a gamificação de tarefas.
Bom, o objetivo aqui não é entrar no mérito dessa solução, se ela funciona ou não etc. Mas, a partir disso, me veio a mente sobre como o uso do conceito de geração é uma tentativa frágil de compreensão de comportamentos ou indivíduos.
O termo aparece com ares de ciência, como conceito sociologicamente válido, mas na maioria das vezes é só uma tentativa apressada de inteligir a realidade.
Basta uma rasa pesquisa no Google sobre o termo para perceber algo estranho acontecendo:
A tal da “geração Z” virou uma chavinha interpretativa pra tudo:
se o jovem está ansioso → é da geração Z.
se não quer trabalhar num escritório com tapete cinza → geração Z.
se muda de ideia, se troca de curso, se tem dúvidas sobre si mesmo → geração Z.
Um jovem da geração Z pode morar em Belém ou em Higienópolis
Vamos começar por aí.
Imagine dois jovens de 21 anos: um vive na periferia de Belém, trabalha como entregador de aplicativo desde os 13, ganha R$ 1500 por mês e sonha em comprar uma moto; o outro, nascido no mesmo ano, cursa ciências sociais na USP, é filho de funcionários públicos e posta sobre veganismo e política identitária no Instagram.
Ambos são classificados como “geração Z”. Mas o que compartilham, de fato?
Quase nada.
E mesmo assim, esses dois jovens são enquadrados na mesma categoria, no mesmo rótulo, no mesmo arquétipo, se tornam a mesma persona desenhada numa apresentação de PowerPoint com o título:
"Como atrair a geração Z para sua empresa" ou semelhantes.
E o mais curioso é que até a própria McKinsey — aquela que vende relatórios caríssimos sobre como lidar com “as novas gerações” — diz o seguinte:
“Cada geração contém uma infinidade de indivíduos únicos com suas próprias opiniões, valores, comportamentos e planos para o futuro.”
Mas, por que isso cola?
Bom, exposta a contradição óbvia, diria que é porque parece verdade.
Quero dizer, essa simplificação entrega explicações rápidas para realidades complexas — e o mercado adora isso.
As grandes consultorias aprenderam a empacotar comportamento em forma de tendência. Relatório de foresight, estudo de mentalidades emergentes, mapa geracional… tudo com muitas imagens e frases como:
“A nova geração valoriza autenticidade, propósito e impacto social.”
Bom, pelo menos me parece que ninguém quer viver uma vida falsa e sem sentido. Sei lá.
Essas análises, muitas vezes superficiais, ganham força porque oferecem às empresas uma sensação de previsibilidade. Ao enquadrar uma geração inteira, acreditam que podem antecipar preferências, adaptar produtos e manter sua relevância.
Empresas compram esses relatórios como quem compra uma peça de luxo: não pela função, mas pelo símbolo.
“Estamos acompanhando as transformações.”
“Já entendemos o comportamento das novas gerações.”
“Sabemos como engajar os nativos digitais.”
Soa bem numa reunião com o conselho.
Um sistema que se retroalimenta
A consultoria identifica uma “nova mentalidade” com base em observações amplas e vagas.
As empresas adotam esse diagnóstico e começam a produzir conteúdo, produtos e estratégias baseadas nele.
A repetição dessa narrativa gera familiaridade — e a familiaridade produz a ilusão de validade.
Com isso, o discurso se naturaliza. A geração Z “passa a ser” aquilo que o mercado diz que ela é — não por essência, mas por repetição e reforço.
O jovem é viciado em TikTok
Na prática é isso que acontece. Generalizações como essa se tornam válidas socialmente, mas a realidade nem sempre é assim.
Sim, talvez o jovem seja mesmo viciado em TikTok. Mas isso estabelece uma relação causal com o fato dele ter nascido depois de 95? Eu diria que não.
Ainda que o uso intenso de redes sociais entre jovens seja visível, isso não significa que haja uma relação causal direta entre idade e vício. Essa associação é, no mínimo, apressada, e possivelmente invertida.
Existem fatores bem mais determinantes para a formação de padrões de consumo e comportamento digital do que o ano de nascimento.
Contexto familiar, acesso à educação, repertório cultural, ambiente social, saúde mental, tempo livre — todos esses elementos influenciam o modo como alguém se relaciona com a tecnologia.
A própria estrutura das plataformas, baseada em capturar atenção e maximizar tempo de permanência, é um vetor central. Ou seja: o design algorítmico opera sobre qualquer cérebro — não apenas o de quem nasceu entre 1995 e 2010.
Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), realizada no contexto do doutorado da terapeuta ocupacional Renata Maria Santos, investigou o impacto do uso excessivo de telas em idosos. O termo técnico é nomofobia — medo ou angústia de ficar longe do celular.
A surpresa da pesquisa foi a seguinte: ao contrário do que se esperava, os idosos não demonstraram resistência ao uso da tecnologia.
Pelo contrário — muitos desenvolveram comportamentos típicos de dependência digital:
dormir com o celular embaixo do travesseiro;
levar o aparelho para o banheiro;
recusar-se a interagir com a família para continuar navegando.
Não estamos falando de jovens. Estamos falando de pessoas com 60, 70, 80 anos.
A pesquisadora aponta que esse comportamento aditivo se relaciona com fatores como solidão, ansiedade, transtornos de humor e baixa presença de vínculos sociais estruturantes — o que reforça a ideia de que o vício é um sintoma do ambiente, não uma consequência da geração.
Se o vício fosse um traço geracional, os idosos estariam imunes. Mas o que vemos é o oposto: o ambiente digital afeta a todos — e mesmo assim, só os jovens viram culpados.
Por que culpar os jovens é conveniente
Diante de um cenário de transformação acelerada, instabilidade econômica, precarização do trabalho e erosão dos vínculos institucionais, a figura do jovem — especialmente o “jovem da geração Z” — passou a cumprir uma função simbólica importante: a de bode expiatório da falência estrutural.
O discurso dominante inverte a lógica:
em vez de reconhecer que o ambiente profissional se tornou menos atrativo, mal remunerado, hierárquico e, muitas vezes, sem propósito, prefere-se afirmar que “os jovens não querem trabalhar”, “têm baixa tolerância à frustração” ou “precisam de estímulos lúdicos para se engajar”.
Esse tipo de generalização cumpre três funções principais:
Desloca o foco do sistema para o indivíduo, impedindo diagnósticos mais profundos;
Justifica práticas de controle e adaptação superficial, como treinamentos, gamificação ou ajustes cosméticos na cultura organizacional;
Preserva modelos gerenciais obsoletos, ao invés de questioná-los.
O resultado é um tipo de discurso que parece inovador — mas é profundamente tradicional. A linguagem muda, os termos são atualizados, mas o olhar permanece o mesmo: quem não se adapta é o problema.
Como pensar melhor sobre pessoas
Se a ideia de “geração” ainda pode ter alguma utilidade analítica, ela precisa ser aplicada com muito mais rigor.
Enquanto categoria sociológica, só faz sentido quando entrelaçada a outras variáveis estruturais, como classe social, raça, gênero, território, capital cultural, acesso à tecnologia e trajetória histórica.
Separada desses fatores, a noção de geração deixa de explicar e passa a rotular.
No lugar de repetir diagnósticos genéricos e operar com categorias simplificadoras, há métodos mais eficazes — tanto para compreender comportamentos quanto para tomar decisões estratégicas mais responsáveis:
Análise interseccional, que considera simultaneamente diferentes vetores de desigualdade e identidade;
Estudos de coorte, que investigam como grupos foram marcados por eventos históricos específicos (como pandemia, crise econômica, transformações tecnológicas);
Pesquisas qualitativas em profundidade, que escutam sujeitos em seus próprios contextos de vida, ao invés de reduzi-los a médias estatísticas;
Leitura crítica da tecnologia, que entende como as plataformas moldam desejos, hábitos e afetos — em qualquer idade.
Empresas, instituições e pessoas que se abrem para essa complexidade não apenas compreendem melhor a realidade, como se posicionam com mais honestidade num mundo saturado de fórmulas prontas e narrativas fabricadas.
Conclusão: é o capital de novo, veinho
O uso generalizado do conceito de geração, como vem sendo feito por consultorias e discursos de mercado, não é apenas um erro analítico. É uma escolha funcional.
Essa simplificação não é neutra. Ela fortalece um mercado bilionário de relatórios, diagnósticos, workshops e palestras. No fundo, essa lógica serve ao capital: empacotar o complexo, domesticar o contraditório, gerar valor a partir da aparência de entendimento.
Resumindo, o mercado assimilou uma ferramenta analítica imprecisa e a devolveu embalada como produto.
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