Comecei a ler um livro chamado “O Ego é o seu inimigo” do Ryan Holiday.
Não sei exatamente o por que esse título me chamou tanto a atenção que parei para ler. Talvez por isso ele seja um best-seller. Vai saber.
Fato é que ainda não o terminei, sequer cheguei na metade do livro, mas, já surgiram algumas reflexões interessantes sobre ele. Aqui, decidi discorrer sobre uma destas.
O ego é seu inimigo
A mensagem é essa, mesmo. Ryan, basicamente aponta o “ego” como o obstáculo central ao desenvolvimento, seja de projetos, relações etc, porque este substitui a realidade por uma narrativa autocentrada, uma obsessão pela imagem de si.
“O ego ao qual nos referimos com maior frequência tem uma definição mais casual: uma crença doentia na própria importância. Arrogância. Ambição egocêntrica. (…)
É o senso de superioridade e de certeza que ultrapassa os limites da autoconfiança e do talento. Esta é a definição que este livro usará.”
Dado esse preâmbulo, vou dar uma viajada aqui, mas jajá voltamos ao livro!
As 12 camadas da personalidade
O professor Olavo de Carvalho, certa vez, deu origem à algo chamado de 12 camadas da personalidade, em um documento de 19 páginas, ele descreveu uma espécie de itinerário das motivações humanas, da mais imanente à mais transcendente.
Fato é que tudo ali é ambíguo pra cacete. O Olavo não dá uma forma clara para as 12 camadas — não fica claro o que ele está fazendo ali. Depois, ele aborda o tema de maneira “superficial” em algumas aulas do Seminário de Filosofia, sem intenção de dar uma forma melhor praquilo tudo.
No entanto, alguns de seus alunos — em especial o Italo Marsili, que foi quem contou essa história toda — deram algumas contribuições a esse esboço do Olavo e, junto com elas, o status de “descrição fenomenológica” das motivações humanas.
Se você não sabe o que isso significa, fique tranquilo: eu também não.
Resumidamente, as 12 camadas são isso aqui:
Astrocaracterologia – disposição corporal e temperamento dado desde o nascimento
Hereditariedade – inclinações herdadas dos antepassados; o inconsciente familiar
Aprendizado primário – motivação pela descoberta do mundo e pela curiosidade concreta
Afetividade carencial – busca por amor, aceitação e segurança emocional
Autodeterminação do ego – afirmação da própria força e identidade diante do mundo
Vocação objetiva – uso das próprias capacidades para alcançar resultados concretos
Papel social – cumprimento do dever no mundo, como entrega e serviço à coletividade
Eu diante da morte – síntese existencial: ratificar ou retificar a vida vivida
Vida intelectual – busca da Verdade como imperativo interno
Vida moral – coerência entre ação e verdade; responsabilidade ética universal
Eu histórico – consciência de que seus atos alteram o curso da história
Eu diante de Deus – vida vivida sob o olhar do absoluto, motivada pela redenção
Dito isso, cada camada se refere a um estágio de maturidade da personalidade, digamos assim — e, neste texto, falaremos sobre a quinta camada (e um tiquin da sexta), que é até onde a minha experiência concreta alcança.
A quinta camada
A quinta camada é a camada da autodeterminação. O momento em que o sujeito começa a se enxergar como alguém que age no mundo e que deseja vencer com o próprio braço. É o nascimento de uma identidade pessoal ativa, ainda frágil, mas já não inteiramente dependente do afeto alheio. A questão já não é mais “sou amado?” (4a camada, a do afeto), e sim “sou capaz?”
Esse é o comportamento do típico adolescente. Ele entra em discussões inúteis, quer fazer coisas diferentes, experimentar, provocar. Tudo isso é tentativa. Tentativa de se afirmar, de se provar forte, de descobrir se é foda ou não.
Veja que, nesse estágio, as ações ainda não possuem um direcionamento claro ao mundo dos resultados, aos objetivos palpáveis. O foco está voltado para dentro: o quinta camada quer testar a própria potência, não realizar uma obra. Ele ainda não quer fazer algo por algo — quer fazer para se ver fazendo.
E isso não é um erro. Pelo contrário: esse momento é essencial para o desenvolvimento da personalidade. Todo mundo precisa passar por essa etapa. Precisa se autoafirmar, se ver capaz, saber que tem alguma força.
O problema, ao meu ver, começa quando essa passagem não acontece no “tempo certo”. Quando ela não é atravessada na adolescência, e então permanece, com muito mais peso, na vida adulta. É aí que o sujeito adulto, mesmo com currículo, cargo, títulos etc, continua vivendo como se estivesse em teste. Como se ainda precisasse provar o próprio valor para si mesmo a cada interação.
É por essa lente que estou gostando de ler o livro do Ryan Holiday: como uma espécie de crítica velada a uma quinta camada mal resolvida. Obviamente ele não conhece as 12 camadas, mas, de bate-pronto, é essa a impressão que fica para mim. O livro inteiro é uma ode contra a obsessão pela autoafirmação.
E o que ele propõe como “solução”, ainda que sem dizer nesses termos, é um deslocamento: da quinta para a sexta camada.
A sexta camada é o mundo dos resultados
O mundo onde o poder já não é mais testado, mas empregado. É quando a força deixa de ser medida por conflitos ou performances e passa a ser avaliada pela utilidade concreta. O sujeito já não quer ser admirado, quer ser eficaz. Ele descobre suas aptidões, transforma habilidades em capacidades, trabalha, entrega valor. A medida já não é mais “como me vejo?” ou “como me veem?”, mas “funciona ou não funciona?”
E o foda-se?
Há cerca de 2 semanas, eu estava no Instagram e me deparei com uma publicação meio tosca apontando que, se o uso de IA acontecer de maneira que poupa o seu esforço cognitivo, isso pode ser prejudicial e blá blá blá. Mas o ponto não é esse. O ponto é: eu vi uma psicóloga fazendo pesca em balde nos comentários
(se você não sabe, pesca em balde é uma técnica de captação de seguidores/clientes. Basicamente, você, como profissional, faz comentários relevantes em publicações de perfis grandes para atrair tráfego pro teu perfil).
Só que algo no comentário dela me chamou a atenção:
Me parece um pouco contraditório um comentário criticando a passividade enquanto reproduz integralmente um texto feito por IA. Sei lá.
Eu uso IAs generativas todos os dias, então eu sei identificar um texto 100% feito por IA (até o momento, vai que um dia a IA deixe de ser uma máquina que funciona a partir de probabilidade e estatística e passe a explorar nuances na linguagem como nós, humanos).
Se você entrar no LinkedIn, vai notar que muitos dos textos são escritos por IA e possuem a mesma estrutura, as mesmas pontuações e tal.
Entrei lá pra dar uma analisada nisso prestando atenção, e o segundo texto que me apareceu tem a estrutura típica da redação feita por IA:
Nada (perceba que escrevi “nada”, e não “ninguém”, rs) melhor do que o ChatGPT para dizer isso:
Dadas as minhas justificativas para brigar on-line, eu dei uma alfinetada na moça, dizendo: “E você escreveu esse comentário usando IA! Parabéns!”
Kkkkkkk
O que me chamou atenção é que, ao meu ver, ela tinha algumas opções:
Ignorar o comentário de um moleque enchendo o saco;
Se justificar de alguma maneira;
Entender que não era um ataque pessoal, reconhecer que o comentário não foi escrito por ela, e portanto, admitir a contradição que cometeu;
Reclamar a autoria do texto e retribuir a alfinetada.
O que você acha que uma mulher de cerca de 40 anos, aparentemente madura, com doutorado (ou é doutoranda, não lembro) na USP, escolheu?
“sou redatora, psicóloga e filósofa. Quer que eu te mande um treinamento de 3 passos para traduzir o pensamento em texto?”
Depois de alguns comentários, dei uma zoada no fato dela falar que eh filósofa (valeu, Olavo!), pega a resposta aí:
“Sim, publicitária pela ESPM e FAAP, psicóloga pela USP e filósofa (trancada no terceiro ano pela PUC) […]”
Enfim, o objetivo aqui é pensar sobre como, apesar de todos os títulos, 40 anos de vida, inúmeras experiências, a pessoa ainda tem a mesma postura que um adolescente.
O mesmo ego frágil, que precisa se defender, que precisa dizer: eu sou alguém.
Mesmo que para isso tenha que mentir para si mesma.
Como se admitir que usou IA para um comentário em uma rede social (algo mais banal impossível) fosse uma ameaça existencial. Ser vista fora da imagem que ela mesmo montou é intolerável.
Curiosamente, quando isso aconteceu, eu estava lendo o livro do Ryan Holiday, e ficou bem nítido para mim:
Isso é um fenômeno coletivo
Porque não é raro. Pelo contrário: é o que mais se vê. Gente velha, mas que reage como um adolescente ferido ao menor sinal de contradição.
Quanto mais a idade avança, mais o sujeito se enrosca. Porque a motivação existencial vai se embaralhando com interesses, compromissos, identidades públicas, boletos, vaidades, promessas feitas etc. E aí ele já nem sabe mais quem é de verdade. Talvez nunca tenha sabido. Já não consegue mais se desfazer das mentiras sem desmontar a história que construiu de si.
E, se não desmontar, fudeu.